terça-feira, 29 de setembro de 2015

Grande Trail da Serra d'Arga - A festa do trail com F grande..

Quando as saudades do trail apertam mesma, não há nada melhor do que fazer um trail com quem percebe de trails como ninguém. Desde que fiz o primeiro trail da serra d'Arga, nunca mais larguei as provas do Carlos Sá e mais houvessem, mais fazia. Por isso, quando cheguei ao centro de Caminha para o Sunset, logo percebi que este fim de semana seria memorável e as minhas expectativas não saíram furadas...
Ao ouvir a música, a voz familiar do interlocutor, senti logo aquele frenesim nas sapatilhas, os piquinhos no estomago e a altimetria a entrar-me pela alma dentro. Parecia de novo que estava em família, porque nas provas do Carlos, todos nos sentimos filhos, irmãos, tios ou sobrinhos. A largada para a prova Sunset foi dada como se estivéssemos entre amigos e mais parecia um puto a correr a primeira volta dentro do centro histórico antes da escalada pelas ruelas acima. Lá ao longe vi alguém de camisola cor de laranja a subir e arranjar fitas...não me diga, era o próprio Carlos Sá! Senti-me nas nuvens por poder correr várias vezes ao lado do Carlos e receber os calorosos incentivos de força. E quais nuvens...!

Chegado à cima da serra, passado o nevoeiro, fomos brindados com um pôr do sol como há poucos neste mundo. Uma manta de neblina a sobrevoar o vale, salpicada por cima com o mais puro cor de rosa da alvorada.
 Simplesmente fenomenal! Estava na hora de ligar os frontais porque não tardava que vinha aí a primeira descida. Quem pensava que o Sunset seria um passeiozinho pelo monte, estava bem enganado. A tecnicidade das descidas e a inclinação das subidas, alternando com verdadeiras incursões no mais escuro das florestas, faziam antever o que nos esperava no dia seguinte. Mas é nestas provas que sentimos o verdadeiro espírito do trail. Por mais assustador que às vezes a descida ou a solidão possa parecer, há sempre alguém que nos puxa pela coragem. Num gesto de verdadeiro espírito de trail, vi as duas primeiras atletas femininas, a Carla e a Goreti puxar uma pela outra e deixarem retomar as posições anteriores depois da Carla se ter enganado no de percurso. Adorei esganar aí a baixo, avisando os caminhantes assustados pelos nossos focos que pareciam vir à velocidade da luz. Quando entrei finalmente em Caminha e passei de forma vertiginosa pela meta, não consegui escapar ao microfone do interlocutor: "Então Lieven, deste vez já não me enganas, o belga que fala português...". E nem a Nilza escapou uns vinte minutos depois quando o mesmo microfone a apanhou todo contente por ela já não estar lesionada...É o que dá ter passado os quatro dias no Gerês...
 
No domingo, o dia da verdadeira festa do trail, resolvi sair de Afife para Dem supostamente com a ajuda preciosa do meu GPS fraquinho do carro...Sei que a minha vontade de fazer trail era muita, não sabia que a vontade do GPS também era tanta...por pouco não cheguei atrasado à Dem depois da menina de GPS me ter mandado fazer um passeio todo terreno lá para as eólicas de uma das serras...o que me valeu, foi ter tido outro GPS no telemóvel e a boa disposição do dia anterior...quanto ao carro, deixei-o na primeira rua que encontrei em Dem, sem bem saber onde. Mas tarde viria o arrependimento deste ato irrefletido..
 

Mesmo à tempo para deixar a mochila e inserir-me lá para meio do pelotão na largada, fomos subindo ainda com Dem envolvida na neblina. Os sorrisos eram muitos, a temperatura amena e as pernas cheias de vontade para mais um empeno.
O ano passado fiz os 23km e este ano resolvi fazer a primeira parte do ultra, com uma pequena esperança de me mandar para o ultra no próximo ano...não me lembrava muito bem do empeno do ano passado, só sei que adorei e sabia que hoje iria acontecer a mesma coisa. Quanto aos planos para o próximo ano, depois de tanta subida, vou deixar maturar a ideia por mais alguns dias. O trail da Serra d'Arga é daquelas corridas em que sabemos que nada vai faltar, que vamos encontrar montes de pessoas da organização pelo caminho, sempre de sorriso rasgado, que os aldeões vibram com a nossa passagem e que metade do esforço será esquecido pela experiência inesquecível de ver tanta gente solidária a correr monte acima, monte abaixo. Não contei a quantidade de corredores, mas pelas contas e as filas intermináveis de gente nas provas dos 33km e 53km, foram mais que muitas. Mesmo assim em nenhuma passagem, senti-me apertado, afunilado ou com a sensação que estavam aqui corredores à mais. Senti-me no entanto como parte de uma enorme família de gente que adora trepar pelas serras, soltar-se calçada romana abaixo saltitando de pedra em pedra e que transpira saúde física e mental. Não faltou nada, nada mesmo. Desde os excelentes abastecimentos, a simpatia de todos os voluntários, os incentivos nas aldeias por onde passamos, o percurso maravilhoso, duro quanto basta, com tecnicidade para os amantes do trail, às pequenas partes onde dá para recuperar os músculos cansados. Confesso quando cheguei à última subida, aquela da Senhora do Minho, que fiquei contente por ser a minha última e que senti alguma pena pelos atrevidos que se tinham inscrito nos 53km. A Senhora é daquelas que mete respeito, que nos faz curvar perante ela, ficar sem fôlego só de a olhar e que queremos ver  pelas costas quanto antes. A subida foi dura, muito dura...Uma fila interminável de gente a subir. Olhava para cima e para baixa e só via gente curvada a subir, subir e subir...O bater de muitas palmas ao chegar lá em cima, soube em parte à incentivo e em outra parte à gozo pela centena de metros que ainda faltava subir. Abençoadas foram as torneiras de água potável ao chegar à capela e depois finalmente o prometido plano de cerca de dois quilómetros antes de iniciar outra descida muito técnica, mas extremamente gratificante, em parte por saber que era a última e em parte por já ouvir a música lá bem em baixo na Montaria. Já perto do pico do calor, a chegada, mesmo no início da tarde, soube muito que nem uma maravilha.
Aproveitei um pouco o ambiente de festa lá na Montaria antes de me dirigir de boleia à festa principal em Dem, na horinha certa para ver todos os nossos amigos dos 23km a chegar. Foram muitos abraços, beijinhos e mais entrevistas com o interlocutor de costume para terminar o dia em cheio. Também aí não faltou nada. Outro abastecimento com tudo que era preciso, um bar com coisinhas da terra, as prometidas minis e um miminho da organização, aquela massa para repor todas as energias gastas nos dois dias maravilhosos no monte.
 

Já sabia que este trail prometia e foi tal como esperado, uma festa autêntica, com dois trails do melhor que já fiz, um ambiente como só o Carlos e a sua equipa o sabem criar e um São Pedro a ajudar. Obrigado à todos, à organização, à gente da terra que esteve em grande, aos muitos voluntários, bombeiros e polícias que fizeram deste dia mais um sucesso. E um obrigado aos amigos de sempre pela excelente companhia e amizade neste fim de semana que vai deixar muitas saudades. Até 2016!
 
E é verdade...demorei mais de meia hora para encontrar o carro...Há alturas em que até as mais pequenas aldeias parecem cidades enormes...

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Ultra Trail Douro e Paiva...Entrar no paraíso e subir ao céu...

Quando acabei este trail o ano passado, disse a toda a gente e sem hesitar que voltava em 2015 e foi sem pestanejar que fiz a minha inscrição e a de mais meia dúzia de amigos no mês de dezembro aquando do free trail com o André Oliveira pelo mesmo percurso maravilhoso.
 
É difícil de perceber para quem não é trailer como é que alguém possa querer levantar-se antes das cinco da manhã, num domingo solarengo para se meter à estrada, conduzir duas horas no meio do nevoeiro, apanhar uma camioneta apinhada de outros tantos malucos para depois ficar a olhar durante outra hora para a cara dos mesmos malucos no meio de uma ponte por cima do Douro. E tudo isto para outras cinco horas de sofrimento, empeno e muita sede.
 
Como tinha feito a mesma distância o ano passado, sabia o que me esperava, por isso não liguei à altimetria errada impressa no dorsal. Esperava uma passagem deslumbrante pelo vale do rio Bestança, muita subida exposta até à Santa e depois muita corrida e descida solta a partir dos últimos dez quilómetros. Sabendo isto, era só desfrutar ao máximo do que de melhor há em termos de paisagens no mundo dos trails. Fiquei surpreendido com a pouca água do rio ao atravessar para o moinho, mas mesmo assim não me atrevi a fazer pose para o Miro que tinha montado um verdadeiro arsenal para apanhar quem quisesse refrescar as pernas. Que estas pedras são escorregadias, lá elas são e nem as minhas Bushido são uma garantia para evitar um mergulho vergonhoso no rio mais limpo de Portugal. O ritmo era forte e o entusiasmo era tanto que me enganei por três vezes ao longo do percurso. Não foi por falta de marcação, porque esta estava impecável, foi como sempre por pura burrice... mas a burrice tem cura. Basta deixar a teimosia de lado e à mínima indicação de falta de fitas dar meia volta. Os que nos passaram, a gente há de os apanhar outra vez, mais lá para a frente.
 
Este trail tem de tudo, tem sombra, tem sol, tem floresta, tem serra, tem aldeias com aldeões puros e espantados por ver gente como nós a querer correr por caminhos onde nem as cabras querem passar e tem troços para recuperar fôlego e quilómetros. E depois tem outra coisa...tem aquela mistura mística no início e fim do trail de apanhar os primeiros e os últimos da prova dos 18km. No início o espanto é nosso ao ver a pica entre os cinco primeiros atletas de topo a passar por nós como se não houvesse amanhã e no fim o espanto dos muitos últimos a chamarem-nos atletas e a incentivarem-nos com aquela admiração: "São os dos 35! Estes é que correm!". É melhor que Red Bull, é o que nos dá as verdadeiras asas para ultrapassar a última dezena de quilómetros.
 
Foi muito bom, não faltou quase nada. Vim pela segunda vez e estarei cá novamente para repetir em 2016. Consegui acabar a prova fresquinha e a tirar mais de quarenta minutos ao tempo que fiz o ano passado. Os muitos que vieram comigo também fizeram uma excelente prova, com especial destaque para as meninas que foram umas verdadeiras heroínas. O pódio está a aproximar-se... As canequinhas geladinhas de cerveja foram mais que merecidas.
 

Obrigado à gente de Cinfães e aldeias por ali perto. É muito bom sentir o que há de melhor por este Portugal fora. Obrigado à organização, voluntários, bombeiros e tanta gente que com poucos recursos conseguiu mais uma vez tornar este evento numa das provas de referência do país. Nós cá estaremos outra vez em 2016 ou antes.


quinta-feira, 11 de junho de 2015

Free Trail Subida à Santa - A serra em velocidade cruzeiro...

O Kemedo Team já nos tinha habituado aos bons treinos no monte, mas não estava de todo à espera que este treino à meio da semana fosse tão bom. A enchente na praça de Valongo mais parecia o anúncio de uma prova. Iniciativas como esta são sem dúvida dos melhores cartazes para promover este desporto saudável e viciante no monte e estou convencido que alguns estreantes continuarão com o bicho espetado na mente. 
Depois do trail dos 4 Caminhos com calor infernal, esta súbita descida de temperatura veio como uma bênção e o treino prometia. Embora sentindo-me lindamente depois de três noites de bom descanso, tinha-me proposto correr calmamente com uns amigos menos rodados no sobe-e-desce e arranquei sem pressas com o grupo intermédio. No entanto e empolado pelo ritmo forte e nervoso do grupo, entusiasmei-me na primeira descida...quanto mais corro com as minhas Bushido, mais confiança vou ganhando e hoje foi dia de largar todos os travões. As descidas pouco técnicas e com inclinação suave e constante, convidavam a deixar-me soltar. E de que maneira..! Eu que pensava que o treino no monte me pudesse estragar o ritmo para a próxima corrida de São João, fiquei surpreendido com o andamento. Sem me aperceber, alcancei o grupo dos chamados rápidos. Estranhei, até perguntei se tinha chegado ao grupo daqueles que tinham vindo para levar as coisas mais à sério. Mas estava mesmo no meio deles, agora tinha que aguentar... Ao longo de todo o percurso, o Paulo foi incentivando a malta, puxando pelo ritmo como se tivesse que chegar cedo para o almoço. Não estava de todo à espera de fazer tanto monte acima em passo de corrida e muito menos de rolar soltadíssimo colinas abaixo. Mas adorei, nunca os quilómetros passaram tão depresso no GPS durante uma corrida de trail.

Fomos quase atropelando os fotógrafos, tiramos a foto da praxe lá perto da Santa e já com o cheiro de Valongo a entrar pelas narinas, cruzamo-nos com os caminhantes e últimos atletas dos 10km. A minha surpresa foi tanta quanto a dos caminhantes: "São os primeiros dos 19km...!!!". Cheguei em sprint e tinha acabado de fazer mais de 19km no monte em menos de duas horas. As minhas amigas dos 10km nem queriam acreditar e eu tão-pouco...

Foi bom, muito bom, quase tão bom que tivemos tempo de sobra para conversar e conviver antes de encontrar um restaurante disposto a servir o almoço. Obrigado ao team Kemedo, à excelente iniciativa para promover o trail e ao gesto maravilhoso de associar esta iniciativa à uma boa causa. Se já era fã destes treinos, mais fã fiquei..


 

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Trail dos 4 Caminhos....A montanha russa em lume brando...

Não posso dizer que não sabia para o que vinha. Já tinha feito o trail longo o ano passado, sabia das subidas e do terreno muito técnico e as previsões do tempo estavam espalhadíssimas na net. Também sabia que as três noitadas seguidas do Primavera Sound iriam deixar a sua marca, mas não queria saber...a vida são só dois dias, um já passou e o que falta é para agarrar com unhas e dentes, saboreando ao máximo de cada segundo, nem que seja a doer...e este trail tinha tudo para doer...


 
Confesso que virei os olhos quando vi a altimetria, que nem fiz conta à quantidade de subidas e que disse para mim mesmo: "seja o que Deus quiser, vou atrás da malta, mentalizado para me colocar em piloto automático quando a cabeça começa a desligar..". Começar um trail destes à meio da manhã, entrando quase desde o início no pico do calor, iria fazer vítimas. Houve quem dissesse que não devia ter levado a mochila com água, que os abastecimentos eram mais do que os suficientes, que o litro de água às costas só era peso à mais e que ia morrer de calor embrulhado na mochila. Tenho a quase certeza que quem me disse isso, engoliu em seco, e muito seco estas palavras e até acredito que tenha sido já antes do primeiro abastecimento.
Lá em casa, quando era miúdo, o almoço era servido ao meio dia e meia. A minha mãe sempre me disse: "Quem estiver está, quem não estiver, que estivesse". Não percebi a espera de centenas de atletas por meia dúzia de atrasados. À hora da partida, já todos estávamos com aquele ar de bronze e com o suor a escorrer pela cara e costas abaixo...foi só o princípio de muita e muita suadela...
Os usuais entupimentos depois da entrada em single track logo no primeiro quilómetro, não atrapalharam demasiado, tinha-me proposto fazer as coisas nas calmas, convencido que algures no percurso iria pagar pelos excessos das noitadas anteriores. Não sei se foram a dupla dose de cafeína antes do trail ou os vestígios de álcool da noite anterior, mas senti-me lindamente. Fui correndo monte acima, monte abaixo com uma facilidade tremenda, brincando com o Jorge que mais tarde confessou que lhe passou pela cabeça abandonar por não conseguir acompanhar-me. E competitivo como o Jorge é, é preciso muito para chegar à tal ponto. No espírito da mesma brincadeira e graças à mochila recheada, resolvi nem parar no primeiro abastecimento, obrigando o Jorge à esforço redobrado para me apanhar novamente...pois é Jorge, o Belga é tramado...
Lembro-me do tempo em que hesitava molhar as sapatilhas. Hoje adoro procurar as poças e chapinar-me todo só pelo gozo de ficar todo porco. O trail dos 4 caminhos não podia ficar de fora da tradição portuguesa e tivemos direito à água, água e mais água e se houvesse mais, mais jeito teria dado. Fomos passando pela montanha russa, com subidas ingremes, umas mais e outras menos expostas, descidas muita técnicas do estilo à que esta serra já nos tinha habituado o ano passado e muito...muito calor. Foi gerir esforço, água e passando de abastecimento em abastecimento. Tal como esperado, os excessos das noites anteriores, o calor e o próprio percurso em si, deixaram a sua marca. A partir do quilómetro quinze, foi gerir ainda com mais cuidado e tentar guardar algum fôlego para o sorriso na meta. Porque um trailer que se preze, tem que entrar triunfante com sorriso de orelha a orelha para o fotofinish e com ar de quem fez aquilo tudo com uma perna às costas. E hoje tinha que ser mesmo, nem que fosse para chatear o Jorge...

 
Deve ter sido a partir dos últimos seis ou sete quilómetros que nos começamos a cruzar com os caminhantes e alguns perdidos do trail curto. Desta vez, vi poucas caras de admiração, ouvi poucas palavras de incentivo ou gargalhadas. Vi muito desespero, gente encostada e com ar de querer desistir. Hoje fomos nos, os malucos do trail longo que fomos incentivando os caminhantes, dando força, juntamente com os muitos voluntários da organização nos últimos quilómetros...senti ali um ligeiro sentimento à arrependimento por terem iniciado as várias provas à meio da manhã... 

Se foi duro? Pois foi. Se gostei? Claro que gostei, mas sou suspeito. Gostei da escolha do percurso que teve tudo do ano passado e muitíssimo mais, até gostei do calor, porque é esta dureza que nos fica na memória e que nos traz aquela sensação de dever cumprido. Gostei sobretudo do verdadeiro espírito do trail, do companheirismo, do sofrimento em conjunto e dos muitos amigos que hoje resolveram fazer este trail tão pertinho de casa. E como não podia faltar, gostei da sessão de alongamentos da Nilza, das palhaçadas do T e do Jorge, das cervejas com o João e o resto da malta, de ter encontrado a Graça no monte, da receção da Ana, da Manuela e do Zé. Olha, pronto, gostei e para o ano lá estarei outra vez!
 
 


quarta-feira, 3 de junho de 2015

Trail da Raposa - Um trail que não mete água, não é trail que se preze...

Chega uma altura na vida em que o juízo fala mais alto que a loucura e a minha inscrição no Trail da Raposa foi fruto deste breve golpe de saúde mental. Depois de uma série de ultras e duas semanas de paragem, resolvi inscrever-me numa distância menor.

Se não fossem as sucessivas ofertas de bónus de quilómetros na distância do trail longo, uma festa de aniversário na sexta que se prolongou pela madrugada dentro, outra corrida matinal no sábado, uma sessão de paintball e mais uma noitada no sábado, até podiam pensar que o juízo me tinha batido à porta, mas não...uma boa dose de loucura tem que estar sempre presente na mente de um trailer, nesta procura incessante de sofrimento.

E assim fomos de madrugada, direção Paredes, com dois regressos das nossas atletas princesas após longo período de recuperação por lesão e outras duas estreias nas distâncias maiores. Há coisas que continuo sem perceber...um ambiente na praça principal de Paredes a tresandar de festa e só um cafezinho aberto, com tanto atleta a querer matar o vício... É verdade que todos tínhamos que apanhar um comboio, mas não havia pressas nenhumas..

No alinhamento para os 26km, mais parecia o pelotão para uma prova de meia maratona. Acho que nunca tinha visto tanto trailer junto para uma única distância. O sol brilhava, a ansiedade de começar e fugir do pico do calor era grande e as t-shirts caveadas prometiam cumprir na integra a sua função de nos manter frescos. Aquela largada de faz-de-conta para irmos ter todos ao comboio, serviu como um excelente aquecimento, o ambiente era de festa e não faltava gente a cantar: "Apita o comboio...". Gostei desta variante de invadir a estação da CP e de colorir o comboio com trajes de trailer.

Um breve olhar para a altimetria inspirou-me alguma tranquilidade, o percurso resumia-se mais ou menos à duas subidas jeitosas e mais umas quantas surpresas menores. Estava à espera de um trail rápido, embora soubesse que teria que ir com muita calma...a paragem e os abusos das noites anteriores podiam-me custar caro. Por isso, fui na ótica de curtir a paisagem, soltar as pernas e chegar fresquinho como nem uma alface. E assim foi, subidinhas mais ou menos picadinhos sem serem demasiado longas, uns bons troços com piso bom e umas descidas de apesar de alguma tecnicidade, bastante rápidas e sobretudo secas (coisa que já não me lembrava há algum tempo). Adorei a descida em rappel antes da senhora do salto e a própria senhora foi tratada com o carinho que ela merece. Passou-me pela cabeça saltar para o rio, mas consegui conter-me. Embora sempre alvo de alguma confusão, adorei o cruzamento com os caminhantes mais para o fim do troço. Gosto daquela sensação de admiração pelos loucos que vêm aí pelo monte abaixo. É o que o trail tem de bom, há respeito e admiração mútuo por todos os atletas. Fui pedindo desculpa à medida que fui passando, agradecendo e vi vários caminhantes a oferecer água aos atletas com já muitos quilómetros nas pernas, num gesto de 'estamos aqui todos para o mesmo'.


À chegada, e tal como previsto, tinha a frescura da alface, tinha as princesas à espera, tal como o coach e o amigo T, que já estava a sonhar com rojões. Foi bom ter ido para uma distância menor que a do ultra, senti-me lindamente. Mas nem por isso me ia safar da sessão de alongamentos. Afinal para quê fazer estas loucuras, se depois não houver um bocadinho de sofrimento. Fiz sessão de quarenta minutos de alongamentos na relva, com o sol a dar e repeti a dose depois da nossa última atleta ter chegado. Não só fiquei como novo, como devo ter rejuvenescido uns quantos anos.

Gostei deste trail, dos percursos, da excelente marcação, dos abastecimentos onde não faltou nada e do ambiente de festa ao longo de todo o percurso. E sim, molhei as sapatilhas várias vezes...porque um trail em Portugal que não mete água, é coisa para meninos de colégio. E as minhas Bushido, que são aquela máquina, já viram terra, água e pó digno de um verdadeiro trailer.

Parabéns às meninas pelo regresso sem percalços, às duas estreias que já pedem por mais, à Graça que apesar da lesão no joelho cumpriu corajosamente todo o percurso do trail longo, ao T que finalmente ganhou algum juízo  e à toda a organização pelo grande esforço de levar o trail por  caminhos maravilhosos, à um preço de pechincha.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Taça Ibérica de Trail....Depois da última subida, há sempre mais uma...

Alguém me perguntou: "Tu vais fazer o quê..?! 45km no trail do Vez, 130km nos quatro dias do Gerês e inscreveste-te para os 50km de Cerveira..?!"
Eu sei que me precipitei ligeiramente, que talvez tenha roçado a insanidade, mas o cartaz prometia e seria a minha primeira, mesmo por poucos metros, incursão em terras vizinhas na minha ainda curta vida de trailer. E já que era para partir tudo, partimos como deve ser...
Sempre soube e muita gente me disse que era preciso uma boa dose de loucura para gostar de trepar montes e serras e também sabia que sair de casa antes do galo cantar para me meter na estrada embrulhada em nevoeiro, faz parte desta dose. A gente de Vila Nova de Cerveira, também deve ter pensado assim, tal era a dificuldade de encontrar um café aberto. Tanta esplanada e ninguém sabia da vinda dos malucos pelo monte. Ai, se soubessem...tanto cafezinho e pãozinho com marmelada que teriam vendido...
 
O pelotão composto pelos bravos dos cinquenta era escasso e destes heróis do dia, metade vinham do país vizinho. A vontade de arrancar era desproporcional à nossa cara de sono, mas teria que ser, era preciso aproveitar do tempo fresquinho para rolar quilómetros...e lá fomos serpenteando pela vila e monte acima. Para quem estava à espera de passar a ponte da amizade, ter que mostrar o passaporte, cumprimentar gente com uns buenos dias e voltar às terras lusas, ficou a saber que afinal os nuestros hermanos tinham medo de nós...um alto responsável galego recusou-se a assinar a autorização para o nosso assalto do outro lado do rio Minho.

 
Aquela coisinha, impressa no dorsal de pernas paro o ar, chamada altimetria, já me tinha cheirado um pouco suspeito...mais parecia um batimento cardíaco...mal eu sabia qual seria o batimento ao escalar tanta parede acima. O nevoeiro traiçoeiro escondia bem o que nos esperava e  apesar da temperatura amena da madrugada, não demorou nada até sentir o suor a escorrer pelo nosso corpo abaixo. O sobe e desce para as próximas horas tinha começado.
 
Sei que passei por serras muito bonitas, algumas cobertas em neblina, que trepei riachos acima, que cheirei musgo na floresta, que contei pedra atrás de pedra e que algures depois da curvatura na subida havia mais outra subida...Valeram as paisagens, a simpatia e carinho nos abastecimentos, as palavras de incentivo dos companheiros de sofrimento e a música lá bem ao fundo no vale...Ao chegar ao que eu pensava ser a última subida, lá perto da estátua do veado, um cavalheiro da organização apontou-me uma fita cor de laranja: "Agora é só descer até aí e depois sobe só mais um bocadinho até ali e já está...é sempre a descer...". Que raio de mania que esta gente tem nos abastecimentos...é tudo uma cambada de mentirosos. Chamam à isto subir..?!! Em boa linguagem de trailer, chama-se trepar, gatinhar, içar o corpo corda acima por calhaus enormes. E na descida, quando pensava que já tinha visto tudo depois das escadinhas escorregadias, alegremente olhando para baixo e com pouca atenção às fitas, cheguei a uma estrada em asfalto com a música já bem pertinho... O que eu tinha sonhado com este oásis depois de tanto piso técnico...e não é que as fitas laranjas desapareceram...? Era bom demais, volta para atrás, novamente fora da civilização e eis que vem outra subida...Confesso e sei que me fica mal, mas a única alma viva perto de mim, era um Espanhol. Não resisti, larguei um palavrão bem alto que me soube pela vida...A malta que organiza trails deve pensar que a gente vai aos trails por causa do desnível positivo, do sofrimento ou por alguma promessa...ainda não perceberam que a única coisa que nos faz cometer tais loucuras é a medalha, o chouriço nos abastecimentos, a travessa de rojões e a caneca de cerveja no fim.
 

 
Na reentrada na civilização, como se fosse dar um passeio pelo centro histórico da vila, espreitei invejosamente para os finos e panachés nas esplanadas e sabia que já faltava muito pouco para a minha caneca de cerveja. Como agradável surpresa, fui recebido por uma voz conhecida do repórter de serviço, o mesmo do Gerês que ao longe foi mandando palavras de incentivo dizendo que estava a chegar o Belga que falava português...Um último sorriso, daqueles que os trailers tão bem sabem disfarçar para a fotografia e finalmente a merecida medalha da amizade ao pescoço.
Esperava-me a coça dos alongamentos, um banhinho quente que soube à maravilha e por fim o prémio do dia...uma caneca geladinha de néctar dos deuses. Tinha valida a pena fazer este trail.
 
 
 
Não posso deixar de agradecer à organização que com a sua simpatia, profissionalismo, excelente escolha dos percursos que tinham tudo de bonito e de duro, fez com que este trail já entrou na agenda do próximo ano. Parabéns por este primeiro de muitos trails na maravilhosa serra da Cabreira. E como estas coisas só fazem sentido em grupo, um muito obrigado à Nilza pela coça que levei, ao T pelo passeio religioso, à Graça e à Sara pela partilha de todo o sofrimento no monte. Obrigado por toda esta loucura saudável.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Gerês Trail Adventure visto por um Belga...


Antes de começar a descrever esta incrível aventura, deixa-me só contar como cheguei até aqui.
A corrida sempre fez parte de mim, aliás foi das poucas coisas que me deixarem fazer quando era miúdo e ao longo dos anos tornou-se um vício. Sempre fui corredor de estrada e quando me falaram a primeira vez nos trails, pensei que esta coisa maluca não era para mim, que devia era proteger os joelhos, tornozelos e gémeos para poder continuar a correr até morrer...até que aceitei o desafio de me arriscar pelos montes e trilhos dos malucos e nunca mais quis outra coisa...
A ideia, ou antes o sonho de participar no GTA veio depois da primeira ou segunda experiência com o Carlos Sá. Já não sei se foi na Serra d'Arga ou no Gerês Marathon, só sei que iria chatear toda a gente que fosse preciso até conseguir inscrever-me  nesta festa do trail. Tentei convencer amigos para fazer equipa comigo, contactei a organização para arranjar parceiro, mas ninguém achava que alguém no seu perfeito juízo poderia querer correr tipo doido durante quatro dias a fio. Mesmo quando lançaram a possibilidade de correr à solo, candidatei-me, enviei o meu humilde curriculozinho, pensando que nunca seria aceite...Foi o meu dia mais feliz nesta curta vida de trailer quando recebi a notícia que me podia inscrever à solo...Afinal, ser chato sempre convence!

Etapa 0 - Trail Solidário do Vez - 45km

Esta etapa foi um bónus, ou melhor, como o chamaram, um bom treino para o que vinha à seguir...Não sou pessoa de dizer não aos convites e não ia deixar ficar em branco esta simpática oferta de poder participar (de graça!) à primeira etapa do PGTA, lado ao lado com aqueles que viriam a ser os meus heróis ao longo da próxima semana, . Mesmo a tempestade assustadora da noite anterior, que afastou mais de metade do meu grupo de amigos, nunca chegou a ser motivo de preocupação da minha parte. Se era para fazer os 130km, mal era se hesitasse já num mero treininho no monte...
Com um nervoso miudinho, fui chegando à parte da frente da largada, fui admirando o pessoal com os dorsais com poucos números (sim, aqueles heróis dos 280!) e sentia logo que havia aqui qualquer coisa de especial. Estes trails do Carlos Sá não são todos organizadinhos, prontinhos com tudo empacotadinho...aqui é preciso ter garra, querer ir para a aventura, para o desconhecido, porque mesmo assim está lá tudo pensado ao pormenor...só que não é apresentado de tabuleiro. Podem comparar-se os trails, ditos normais, como ir ao restaurante. A ementa está feita, está lá tudo escrito, até as vezes parece que a comida já vem meia mastigada. Comemos, bebemos, vai o cafezinho, pagamos e vamos para casa...Nos trails do Carlos Sá é diferente. É como jantar em casa. Não sabemos o que vai ser, mas sabemos que tudo que a mãe faz, é bom. Sentamo-nos, deixamo-nos surpreender pelos dotes culinários que nos são familiares e depois do jantar, ficamos, porque não queremos ir para lado nenhum...este é o nosso lar, a nossa família e sentimo-nos bem..
Mas fiquei de falar sobre a prova. A prova foi o início da festa que se prolongaria ao longo de vários dias. A alegria de chegar até aos dois primeiros abastecimentos com pessoal das distâncias mais curtas e de ser recebido pelos grupos folclóricos e gente da vila a presentear-nos com sorrisos rasgados e produtos da terra, tudo isto antes de começar o verdadeiro sobe e desce, nem me fez lembrar que já tinha mais de um terço do percurso nas sapatilhas. Algures numa descida mais rápida fomos apanhados em cascata por uma verdadeira armada de fotógrafos, já bem conhecidos como o Miro, o Matias  Novo e o Laureano. O percurso tinha tanto de técnico como de paisagens deslumbrantes e a acalmia dos últimos quilómetros ao lado do rio Vez contrastava com a dureza de alguns troços anteriores. Mesmo com a meta à palmos de distância, enganei-me e fui novamente para o outro lado da ponte e a subir o monte. Foi só mais um quilómetro, foi como matar saudades e querer prolongar esta alegria por mais uns minutos. Ao chegar à meta e apesar de ser dos poucos atletas restantes em prova, fui recebido com o mesmo carinho dos primeiros. O Carlos Sá veio ter comigo no abastecimento e perguntou-me se tinha valido a pena fazer os 43km. Respondi-lhe de sorriso rasgado na cara suja que fazer trails assim vale toda a pena. E valeu mesmo. Vi nos olhos do Carlos a mesma satisfação que tinha nos meus e senti-me feliz por fazer parte desta família...

 
 
Etapa 1 - Trail noturno - 14km
 
Ao longo da semana fui acompanhando as fotos e os relatos de alguns dos meus heróis dos oito dias e fui contando as horas para poder entrar na mesma festa. Nem as nuvens negras e a chegada pertinente da chuva ao fim do dia poderiam estragar o frenesim no meu estômago...estava quase...
Tal como o resto do pessoal dos quatro dias, ficamos invejosamente a olhar para a cumplicidade dos nossos heróis dos oito dias e lá fomos timidamente lançando também o nosso grito de guerra...Três, dois, um...todos em corrida rápida, como se não houvesse amanhã, rua abaixo...
Embora me tivesse proposto fazer esta primeiro etapa nas calmas, a adrenalina e o entusiasmo do evento, fizeram-me ir na onda e parecia que estava numa prova de estrada. A correria nas ruas acima, o rodopiar do lago e a festa de luz, fizeram-me esquecer que estava a participar num trail...e depois chegou a escadaria...mas que escadaria..! Olhei, olhei e parecia que estava no vídeo sobre o quilómetro mais duro do mundo de Valtellina. Os bombos bem lá no alto, puxavam as pernas escadas acima e estava convencidíssimo que ao alcançar o som dos tambores, estaria no fim das escadas...mas não estava, os malandros...faltava outro lanço de escadas...Mais uma subida em terra depois destes centenas de degraus e finalmente encontrava-me sozinho no meio do monte. Isto de correr com luz na cabeça, é como correr com a cenoura à frente, vamos acelerando o passo, mesmo sabendo que o perigo espreita em cada pedra, raiz ou buraco...Mas é giro, superdivertido. E assim chegamos à vila que nos foi aparecendo como um refugio de luz, bem lá de cima do monte. Tal como os meus amigos, fiquei surpreendidíssimo com a rapidez desta primeira etapa..
 
Etapa 2 - Xertelo - Vila do Gerês - 37km

A chuva não tinha dado tréguas durante toda a noite e a etapa dura que se aproximava, prometia. O entusiasmo da noite anterior tinha-se transformado em alguma apreensão e lá fomos entrando nos autocarros que nos iam levar até Xertelo. O ambiente à bordo era sereno, como se fossemos todos enfrentar a nossa primeira batalha e nem a suposta avaria de caixa do autocarro foi motivo suficiente para lançar gargalhadas. Afinal, estávamos todos tão sequinhos ali dentro...

Chegados à vila, fomos mais uma vez brindados pela simpatia dos aldeões que mesmo com a chuva, não deixaram de nos brindar calorosamente com um concerto. Parecíamos todos umas sardinhas a esconder-nos da chuva. Depois do briefing e a tradução fabulosa do Mauro, ficamos todos a saber o mesmo...era tudo muito dangerous, era preciso ser muito careful e algures devia haver muita levada...mas pela cara dos estrangeiros presentes, ninguém estava preocupado, estava tudo ansioso para arrancar e logo se viria o que o Carlos nos tinha reservado na ementa. E que ementa! Depois do aperitivo de ontem, este prato de entrada (muito bem regado) tinha todos os sabores e mais alguns. As escarpas, terreno técnico e riachos a atravessar era pura aventura. Na travessia do rio Cávado enfurecido, lembrei-me de me armar em esperto e passar ao lado da fila de gente...aqueles calhaus até pareciam jeitosos...só que os últimos estavam muito longe uns dos outros...lá teve que ser...entrei para dentro da água e por muita surpresa minha, para além da fortíssima corrente, nem pé tinha. Se não fosse a mão de anjo do presidente de Cabril, teria seguramente chegado mais cedo lá em baixo...encharcado já estava, mais encharcado fiquei...a partir daí, resolvi nunca mais sair do trilho marcado, porque se o Carlos nos mando por aí, é porque o Carlos sabe...
Queria retribuir a simpatia mostrada pelo presidente de Cabril, mas quem retribuiu, foi o próprio presidente. Na chegada à freguesia, tinha um verdadeiro banquete montado. Foi com muito pena que resolvi na mesma seguir a minha regra de ouro e fiquei-me pelas simples frutinhas e bebidas isotónicas. Ai, se não tivesse que correr mais quarenta quilómetros de trail...
O resto do trail foi só desfrutar por planícies verdejantes, serras de todas as cores, pedregulhos para trepar e finalmente a última descida bem técnica em piloto automático até à vila. Foi bom, muito bom chegar...Se estava preparado para a etapa grande do dia seguinte? Foi como disse ao repórter da prova: "Daqui bocadinho falamos..."

Etapa 3 - etapa rainha - 51km

Na noite anterior fomos brindados com um concerto do Pedro e irmão durante a Pasta Party. É nestes episódios de animação e amizade que um trail assim faz toda a diferença. Para além de nos sentirmos parte de uma família, de estarmos ai todos reunidos para fazer o que mais gostámos, a corrida em si acaba por ser secundária. Os trails de Carlos Sá são sobretudo convívio, o saborear de tudo que este país maravilhoso e a sua gente de melhor têm para oferecer e sair daí com a alma cheia e o corpo rejuvenescido.
No entanto, o ambiente descontraído da noite anterior não conseguiu esconder o aperto na barriga para o que me esperava hoje. Nem consegui tomar o pequeno almoço em condições, o desafio era demasiado grande e pela amostra da entrada de ontem, sabia que o prato principal seria servido bem recheado e mais uma vez bem regado...
Não foi só a hora madrugadora, nem a teimosia da chuva que fez o silêncio antes da partida. Estávamos todos com dúvidas da nossa reação depois dos primeiros 29km, embora ninguém quisesse admitir que os 35km poderiam ser opção.
E lá fomos outra vez...O ritmo e a inclinação inicial prometiam. Não me lembro se foi antes ou depois de alguém ter falado em quilómetro vertical que me deparei com cascata atrás de cascata. Quando pensava que já tinha visto tudo, lá aparecia outra paisagem mais deslumbrante. Sentia-me no paraíso ou como o Gerson disse, sentia-me Deus. Passei por um rebanho de cabras que gentilmente me cedeu passagem. Incrível, até as cabras são simpáticas por estas bandas. Encontrei cavalos selvagens, manadas de vacas, riachos atras de riachos, serras amarelas, roxas, cinzentas, verdes e azuis. Fui-me encontrando sozinho no meio de nada e acompanhado por gente com sorrisos de pura felicidade. Tanto apanhava gente, como eles me apanhavam à mim outra vez. Mas nunca houve espírito de competitividade e ao longo do dia deixei de ser tratado em inglês, já toda a gente sabia que este Belga falava português...Falei com o músico Pedro que tal como eu fazia o percurso à solo e foi muito reconfortante saber que não era o único maluco a gostar do meu próprio ritmo. Pensei que afinal havia mais quem tivesse falta de juízo suficiente para se meter sozinho numa aventura desta envergadura, mas suficiente juízo para o fazer ao seu próprio ritmo.

Ao chegar aos 29km, a famosa divisão das provas, não hesitei um segundo em continuar. Não me lembro bem se aceitei com alívio ou com uma certa frustração o facto de saber que o percurso tinha sido cortado em cerca de uma dezena de quilómetros, mas tinha a certeza que faria o percurso até ao fim e de forma a gozar ao máximo, sem o mínimo de sofrimento. E foi. A última parede feita meio a trepar, meio a deslizar e com a escarpa à vista, foi puro prazer. O rolar por baixo da pedra enorme e entrar na paisagem lisa em contraste com os penhascos acabadinhos de escalar, foi uma bênção para as castigadas pernas. E lá chegamos outra vez ao último abastecimento, sabendo que só nos restava uma derradeira descida e a música aliviante lá no fundo do vale....Foi muito bom chegar com o sol a dar na cara. Agora só faltava uma última etapa para desfrutar em pleno.

Etapa 4 - Vila do Gerês - 17km

A esperança de acabar a prova com sol desvaneceu depois de espreitar pela janela embaciada. Era para acabar como tínhamos começado...com as sapatilhas encharcadíssimas...
Mas parece que ninguém estava preocupado com isto. O nervosismo e o silencio dos dias anteriores tinham-se dissipado e estava toda a gente em plena rua, à chuva, todos mortinhos que fosse dado o grito da partida. Mesmo assim, a calma com que o grupo saiu da vila, monte acima, contrastava com alguma competitividade vivida nos dias anteriores. Agora era só acabar, desfrutar ao máximo, curtir o ambiente, inalar o cheiro do monte e sobretudo chegar inteiro para a festa final. Quem pensava que esta última etapa seria soft, estava enganado, de soft não tinha nada e o Carlos fez-nos acabar tal como tínhamos iniciado, com o sentimento de dever cumprido, o sentimento de que nos tínhamos divertido à brava, mas com a escrita em dia no que diz respeito à dureza dos trilhos. Embora os trilhos estivessem mais parecidos com rios e houvesse alguma ocultação da beleza das paisagens pelo nevoeiro, fiquei com imagens gravadas na retina que nunca mais me vou esquecer. O serpentear da coluna de corredores, a figura típica do trailer entre calhaus enormes e o festival das cores de primavera salpicadas por rochas emergentes, é digna de qualquer óscar de imagem.
À entrada na vila, tal como previsto, cheguei sozinho e fiz a chegada triunfante, tal como tinha sonhado, de bandeira esticada. O meu sorriso tinha tanto de contente como de emocionante. Estes quatro ou cinco dias foram de longe o meu melhor trail de sempre. Melhor do que este só será a repetição que vou fazer para o ano...


Para acabar não podia deixar de agradecer à organização, ao Carlos e à toda a equipa, às gentes da terra, aos acompanhantes, aos bombeiros, aos voluntários, aos meus amigos Nilza e T que vieram comigo e à todos os meus amigos que me apoiaram de longe. É com eventos destes que me apercebo que cada vez gosto mais deste Portugal, desta gente maravilhosa e desta simplicidade tão bem representada na natureza pura e dura do Gerês. Obrigado por tudo e mais alguma coisa!

Obrigado também aos fotógrafos Miro Cerqueira, Matias Novo, Laureano Freixo e Rúben Fueyo, cujas imagens gentilmente roubei para postar aqui.